Tomaz Silva/Agência Brasil
"Yemanjá sobá. Sobá mirerê. Vou chamar minha mãe, na beira do mar. Vou chamar minha mãe, ela é Iemanjá, a rainha do mar." Estes versos celebram a força e a beleza de Iemanjá, orixá que desperta devoção e encantamento em seus fiéis. A Rainha do Mar, chamada por muitos nomes – Iemanjá, Yemayá, Yemoja ou Dona Janaína – foi festejada em grande estilo neste domingo (2), confirmando seu lugar especial nas tradições afro-brasileiras e no imaginário popular.
No Brasil e em outros países que receberam a diáspora africana, como Caribe, Estados Unidos e Cuba, Iemanjá é o símbolo de força, proteção e maternidade. Seus fiéis, independentemente de religião, recorrem à sua energia, seja nas oferendas ao mar, nas orações ou até ao pular as sete ondas na virada do ano. Segundo a líder religiosa Mãe Marlene de Oxum, "Iemanjá representa tudo: nossa força, nossos ancestrais, nosso equilíbrio. Ela lava nossa alma e coração."
Originária do povo egbá, da nação iorubá, Iemanjá foi primeiramente a deusa de um rio chamado Yemoja, na África. Com as guerras que deslocaram os egbás, esse culto se expandiu pelas margens do Rio Ogun, onde hoje está localizada a Nigéria. Já no Brasil, por meio da escravização e da resiliência cultural dos povos africanos, Iemanjá se adaptou às tradições das religiões de matriz africana. Na umbanda e no candomblé a orixá ganhou expressões múltiplas, como Yemanjá Ogunté, Yemanjá Assabá e Yemanjá Assessu, passando, assim, a ser fortemente associada ao mar.
Além de sua origem africana, a simbologia de Iemanjá foi ressignificada no Brasil através de outras figuras religiosas e mitológicas. É comum associá-la a Nossa Senhora dos Navegantes (na tradição católica) ou até mesmo à sereia Iara, um personagem da mitologia indígena. Essa complexidade tornou Iemanjá não apenas um símbolo da força das águas, mas também uma figura materna universal.
De acordo com Mãe Marlene, a devoção a Iemanjá não é exclusiva de adeptos de religiões de matriz africana. "Ela é tão grande que está presente até naqueles que não seguem o candomblé ou a umbanda. Muitos pulam sete ondas no Ano-Novo ou entregam flores e presentes no mar em gratidão. É uma forma de agradecer pelo ano, uma energia que abraça a todos."
Essa devoção universal faz parte da história da família da fiel Márcia Glória Lima. "Eu cresci vendo minha mãe, seguidora da umbanda, com uma adoração imensa por Iemanjá. Quando me tornei adepta do candomblé, levei isso comigo. Para nós, ela é a mãe de nossas cabeças. Não importa de qual orixá somos "filhos", antes de tudo, pertencemos a Iemanjá."
A tradição, segundo Márcia, já é passada para as novas gerações. Sua filha Débora e sua neta Diana a acompanharam na celebração do Dia de Iemanjá na zona portuária do Rio de Janeiro, reforçando a conexão entre fé, família e ancestralidade.
No Rio de Janeiro, uma das homenagens mais tradicionais é realizada pela Associação Afoxé Filhos de Gandhi, que há 49 anos organiza uma procissão especial em louvor à Rainha do Mar. Nesta manhã, as atividades começaram antes das 8h, com um xirê – cerimônia religiosa que antecede a composição do balaio de flores destinado a Iemanjá.
Por volta das 9h, os fiéis iniciaram uma procissão pela zona portuária, percorrendo cerca de 1,5 quilômetro da sede da associação até a Praça Mauá. No local, um barco aguardava o grupo para que a oferenda fosse depositada nas águas da Baía de Guanabara.
A caminhada teve uma parada simbólica no Cais do Valongo, patrimônio mundial reconhecido pela Unesco, que carrega a memória da escravização. No período colonial, foi ali que desembarcou o maior número de africanos escravizados no continente americano. Essa conexão histórica ressalta o papel de Iemanjá não só como uma figura religiosa, mas como um símbolo de resistência e preservação das culturas africanas no Brasil.
"Dia 2 de fevereiro é importante não só para celebrarmos Iemanjá, mas também para marcar o início do ano para nós, Filhos de Gandhi. Ela é a mãe de todas as cabeças e guia o nosso caminho ao longo do ano", explicou o presidente da associação, Célio Oliveira.
Durante as festividades, o cineasta Rodrigo Moraes celebrou o lançamento de seu documentário Exu Mensageiro, que conta a história da Associação Filhos de Gandhi e seu papel na preservação da cultura negra no Rio de Janeiro. Fundada em 1951, a associação foi uma iniciativa de trabalhadores do Cais do Porto e adeptos das religiões de matriz africana para enaltecer a memória ancestral e os orixás, incluindo Iemanjá.
"O culto a Iemanjá é um momento muito especial para os Filhos de Gandhi. Esta é a celebração mais tradicional da Rainha do Mar no Rio de Janeiro e mostra como a fé, a arte e a cultura de matriz africana resistem e se renovam a cada ano", declarou Moraes.
Muito além das águas e da religiosidade, Iemanjá é presença constante na vida dos brasileiros. Seja nas canções que exaltam sua beleza, no silêncio das oferendas ou nos passos ritmados de um xirê, sua força é sentida como uma mãe que acolhe e protege.
Neste Dia de Iemanjá, as águas carregam muito mais do que flores e pedidos de proteção. Elas refletem a esperança, a ancestralidade e o respeito a um orixá que construiu seu lugar no imaginário coletivo do Brasil e do mundo.